Não sei se o nome Paciência era próprio se alcunha,
sei que era assim chamado o, há muito falecido, marido da senhora Cremilde, que
morreu relativamente novo, ainda hoje na aldeia não se usa o costumeiro “morreu
como o cão do Miguel”, mas, “morreu como o Paciência”, quando querem dizer que
alguém faleceu de forma estranha e ou violenta.
Na aldeia todos sabiam que a Cremilde “acertava o
passo” ao marido, não o diziam “à boca pequena”, frequentemente, e em público,
qualquer fedelho perguntava, “ó Cremilde, já fod..te as trombas ao teu homem
hoje?”. Ela não se amofinava, sorria até, demonstrando alguma vaidade.
O pobre desgraçado deve ter nascido fadado para a
desgraça, lá em casa era o único que “vergava a mola”, andava à jorna para toda
a gente, e quando não havia trabalho fora ocupava-se de uns terrenitos de onde
tirava o sustento para ele, para a mulher e dois filhos.
Um belo dia, logo de manhã cedo, vi-o passar junto
à casa da minha tia, ia com um braço todo ensanguentado, à tarde voltou da sede
do concelho com o mesmo braço engessado, disse-se que o burro lhe ferrara.
Nesse mesmo dia o Paciência foi para longe abandonar o burro, mas ao outro dia,
à noite, o burro voltou e pôs-se a zurrar em frente à casa para lhe abrirem a
porta da loja. Fazendo jus ao nome, o marido da Cremilde acolheu-o novamente,
antes não o tivesse feito, passado pouco tempo o asnático voltou a ferrar no
dono, só que desta na cabeça, matando-o, logo começou o falatório, todos na
aldeia responsabilizavam este ou aquele da casa, menos o burro, pela morte do
desgraçado.
Certo é que veio a guarda, uma ambulância, levaram
o corpo para autopsiar, fez-se uma coleta, enterrou-se o homem, o burro
permaneceu, e a vida continuou.
Da união do falecido com a Cremilde haviam nascido
dois rebentos, que se dizia poderem ser filhos de qualquer um da aldeia menos
daquele a quem chamavam pai, o Josué, o mais velho que ainda novo, para fugir à
tropa, foi a salto trabalhar para as minas de carvão das Astúrias e por lá morreu
com a doença do silicone nos pulmões, nunca mais regressando à terra que o viu
nascer, nem mesmo depois de morto, e o Eufrásio.
Cremilde era uma mulheraça de finas feições, se não
se reparasse na bigodaça, pró alto, anca e peitos volumosos que fazia questão
de exibir fizesse frio ou calor.
Era conhecida nas terrinhas todas, ali à volta,
onde houvesse feira, ela ia a todas, ia e vinha, outras vezes ia e ficava por
lá uns dias quando era apanhada em flagrante naquilo que melhor sabia fazer,
roubar carteiras, constava que nunca foi parar a uma prisão porque os guardas a
obrigavam a devolver o que tinha roubado conseguindo assim que a perdoassem,
depois mantinham-na no posto por uns tempos até que, começando pelo comandante
seguindo-se as praças, todos se servissem dela até ficarem satisfeitos, e ela
não se importava, pois nos dias de festa lá da terrinha os guardas passavam
sempre por casa dela, depois da procissão lá estavam os cavalos brancos
amarrados na argola da tasca do Paulino que ficava mesmo defronte.
Nas suas andanças pelas feiras, Cremilde fazia-se
sempre acompanhar pelo filho mais novo, adivinhava-se o futuro do pequenote.
Por volta dos 13/14 anos, Eufrásio tornou-se num
adolescente extremamente violento, batia em todos, novos, velhos, homens,
mulheres e crianças, chegou mesmo a dar um enxerto de porrada ao sacristão, ao
coveiro, que era seu tio, tentou enterrá-lo numa cova que estava a abrir para o
Megilde que se tinha suicidado com remédio do escaravelho, não tivesse o
Arménio (coveiro) gritado a plenos pulmões por socorro e ia “desta para
melhor”.
Eufrásio arriou impunemente em toda a gente menos
no padre e no regedor, até que um dia abriu a cabeça ao primeiro e o segundo
espetou com ele num reformatório onde permaneceu até à idade da tropa, nem foi
a casa, assentou praça diretamente.
Iniciou-se então uma nova rotina, com regularidade
aparecia na povoação um jipe da tropa, vinham buscar o recruta que saía de
fim-de-semana e não regressava ao quartel, por lá ficava uns tempos de castigo
até que lá aparecia novamente o carro com a polícia militar.
Feita a recruta o nosso herói foi mobilizado e foi
“bater com os costados” na Guiné, devido aos constantes castigos por lá ficou
quase cinco anos, quando regressou trazia pelo braço uma senhora da cidade, era
uma das madrinhas de guerra que, graças aos aerogramas que eram de borla,
conseguiu engatar, e com ela casou passado muito pouco tempo.
Entretanto Cremilde, sua mãe, tinha desaparecido,
ninguém se importou, constava que tinha fugido para o Brasil com alguém da
terra ao lado que nunca mais ligou à mulher e aos filhos.
Como nunca tinha feito nada na vida e sem qualquer
fonte de rendimento, Eufrásio decidiu tornar-se proxeneta da própria esposa,
como fazia com sua mãe voltou às feiras, obrigava a mulher a prostituir-se, e
se o cliente estivesse endinheirado roubava-o.
A senhora, cujo nome nunca soube, conseguiu, numa
ocasião em que o marido estava a emborrachar-se no tasco, ir a casa do Sepião
que era quem recebia o correio e tinha telefone público, telefonou para casa de
familiares a contar a sua desgraça e nesse mesmo dia chegou um carro de praça
que a levou, nunca mais o Eufrásio lhe pôs as vistas em cima.
Sem mulher nem dinheiro resolveu emigrar, passado
algum tempo, duma povoação pegada, veio a novidade, alguém que também tinha
decidido tentar a sorte no estrangeiro contou que tinha trabalhado com ele no
Iraque, andava nas obras, a construir os palácios de Saddam, por lá, ou por
outras paragens ficou muito tempo até que voltou, ninguém o reconhecia, magro,
velho, mal-ajambrado, e sem uma mão, voltou maneta.
Contou a um primo que o apanharam, lá, no Iraque, a
roubar e… Zás, mão direita fora.
Sem a mão que tinha arte, para roubar, decidiu
dedicar-se à pedincha, andava de terra em terra a bater de porta em porta, mas
levava com ele a fama que tinha granjeado em novo, ninguém lhe dava nada, antes
pelo contrário, corriam-no quase sempre à pedrada.
Voltou a desaparecer uns tempos, mas como quem é
vivo sempre aparece, alguém da terra o viu a mendigar em Lisboa exibindo o
sítio da mão que lhe amputaram no Iraque.
Os anos passaram e o Eufrásio acabou recolhido numa
instituição de beneficência, mais um par largo de anos se passou até que,
ontem, lá estava uma notícia no jornal, Eufrásio tinha sido detido no albergue
onde sobrevivia, tinha molestado sexualmente uma assistente social idosa
deixando-a às portas da morte.
O jornal andou de mão em mão, o Eufrásio ia ser
patife até morrer,
Com graça alguém disse, “vá lá, anda com sorte,
está cá, olha se fosse no Iraque”.
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