Sepião era viúvo, um elegante professor primário reformado que tinha passado toda a sua vida de docente na terra dos capões.
Aos 8 anos saíra da aldeia para ir servir de marçano na mercearia de um conterrâneo que estava muito bem de vida, como quem o tinha levado para a cidade lhe dava muito trabalho, pouca comida e de roupa o guarda-pó e pouco mais, por volta dos 14 anos, num dia em que foi a casa dum cliente daqueles bons para receber a conta do mês, fugiu com o dinheiro para Lisboa, arranjou um quarto numa pensão manhosa e empregou-se noutro estabelecimento do mesmo género propriedade de uns galegos.
Foram os novos patrões que o incentivaram a estudar, fez a quarta classe com “uma perna às costas” em três anos, entretanto ganhara no bairro a alcunha de “o flecha”, tal era a mestria e a velocidade que exibia e impunha ao velocípede, “”fugei” que aí vem o flecha”, ouvia-se dizer quando nas imediações se ouvia o estridente toque da campainha da “bicla” da “Casa Ramon”, assim se chamava o estabelecimento de mercearia fina.
Os anos foram-se passando, continuou a estudar, chegou mesmo a participar e a vencer (como atleta federado) algumas provas regionais de ciclismo, quando todos lhe auguravam, mesmo a nível de dirigentes desportivos, um promissor futuro no mundo do ciclismo, Sepião, que já namorava uma filha dos patrões, decidiu estudar para ser professor, casou e foi dar aulas para Freamunde.
Como quase todos os professores primários daquela época, Sepião rapidamente viu avolumar o seu pecúlio, quando, por qualquer razão, alguém decidia (estávamos nos tempos em que se emigrava muito para o Brasil) desfazer-se de bens, a primeira pessoa a quem falavam era a ele.
Entrementes, a sua senhora, de quem nunca teve filhos, morreu cedo com uma doença “debaixo”, dizia-se. Nunca voltou a casar, vivia com uma criada que tinha enviuvado cedo, que depois da morte da patroa teve dois filhos registados de pai incógnito apadrinhados no batismo pelo patrão, eram a cara escarrada dele (Sepião).
Ainda no tempo em que dava aulas ia à terra de quinze em quinze dias, controlava a produção dos terrenos que tinha entregues a caseiros, e durante as férias grandes por lá permanecia os três meses, no tempo das vindimas, que ali aconteciam tardiamente, saía de madrugada, no seu “Volvo marreco” para ir dar classes, e voltava pelo lusco-fusco para controlar a produção.
Já reformado foi ele quem tomou a iniciativa de se dirigir à câmara no propósito de conseguir que nomeassem um regedor para ver se acabavam as rixas que eram quase diárias pelas mais diversas razões, viu frutificar os seus intentos, houve nomeação e até fizeram uma cerimónia de tomada de posse com a presença do presidente da autarquia, comandante do posto da guarda, banda e tudo, adivinhem lá quem deu indicação de quem deveria ser escolhido como autoridade lá do sítio, pois, foi ele mesmo, claro que contou com o apoio incondicional do senhor abade.
À aldeia, a correspondência chegava por mão de alguém que fosse à feira semanal à vila, deslocava-se ao posto dos “CTT” dizia que ia buscar as cartas e, como o meio era pequeno toda a gente se conhecia, trazia-as, às vezes chegavam com especto de terem sido abertas, se quem as tinha trazido fosse alguma pessoa que reconhecessem não ser de confiar totalmente não lhe voltavam a pedir o favor, outras vezes, se o portador fosse considerado figura seriíssima, sussurravam, “deve ter sido a PIDE”. Os sobrescritos eram pousados no balcão da tasca e por lá ficavam, alguns nunca eram reclamados, quando estivessem já amarelados eram pendurados num prego que havia na retrete situada no quintal das traseiras, voltavam a ser uteis.
Para acabar com a situação, lucubrando que alcançaria mais alguns proventos, Sepião candidatou-se a agente dos correios, falou com um amigo bem colocado na capital e passado menos de um mês pendurou a caixa (marco) do correio na parede frontal de sua casa, mandou adaptar um janelo na janela original que ladeava a porta de entrada, assim não precisava de abrir a porta nem levantar a janela, abria e fechava o postigo, mandou mesmo fazer um telheiro em chapa canelada, pintada de vermelho onde se lia “CTT” com a gravura de um cavaleiro a tocar gaita, se chovesse os utentes estavam salvaguardados.
Sepião era uma pessoa muito bem conceituada, na missa, o lugar dele era na primeira fila no primeiro lugar junto à coxia do banco do lado direito como quem está virado para o altar, antes de começar a celebração o sacristão assomava-se à porta da sacristia para espanar muito bem a almofadinha em forma de oito onde ele se ajoelhava, e se por qualquer razão ele não estivesse presente ninguém ousava ocupar o lugar.
Como por todo o país as pessoas eram analfabetas, a correspondência também não era muita por isso mesmo, mas a pouca que chegava ficava muitas vezes por ler, outras vezes era lida quando lá por casa aparecia alguém instruído que fizesse o favor, que era sempre pago com uma galinha, uma garrafa de vinho, ou qualquer coisa que soubessem ser do agrado do ledor.
Furão, Sepião passou a ler as cartas a quem quisesse a troco de dois tostões, e cinco a quem desejasse que lhas escrevessem, era ele ainda quem vendia as folhas de papel e os envelopes que comprava às caixas, a quem aparecesse com os apetrechos comprados mais barato na mercearia ele não redigia, alegando que não se dava a escriturar noutro papel a não ser no dele, e assim cobrava mais ainda.
Passadas algumas semanas do início das novas funções sabia a vida de parte das gentes do lugar, com o tempo, tomou conhecimento da vivência de quase todos.
A sua ganância, aleada a algum altruísmo, diga-se, foi o seu fim.
Rosalinda, mesmo analfabeta, era a catequista da aldeia, limitava-se a ensinar as crianças a rezar, o catecismo lia-o o senhor padre. Mulher dos seus quarenta e poucos anos já trazia cinco filhos, todos pequenos, agarrados à saia, o último tinha nascido há pouco mais de um mês. Era casada com um pedreiro famoso, não só pela arte de trabalhar a pedra como pela sua força muscular, para levantar um calhau grande eram três de um lado e ele sozinho do outro, dizia-se que estava proibido de entrar num café da vila por, por aposta, ter levantado até à cintura um “bilhar russo” dos grandes, um feirante que na altura da festa apareceu com um daqueles comboios que se atirava, fazia um looping e, se com força suficiente, chegava a um castelo fazendo rebentar uma bomba, só ganhou uns cobres até chegar o marido da Rosalinda, ele agarrou no punho que havia na traseira do trem, tomou lanço, uma, duas, três vezes e zuuuummmm… Pum fez a bomba, CATRAPUM, fez a engenhoca ao cair no chão toda desfeita.
Rosalinda tinha uma irmã casada que vivia no Porto que foi à festa, abriu-se com ela contando-lhe o receio que sentia de voltar a engravidar, logo ela se prontificou a, chegando a casa, lhe meter alguns preservativos num envelope, e assim fez.
A meio da manhã chegava a ambulância dos “CTT” e de imediato Sepião lia em voz alta o nome dos destinatários, a nova chegava rápido a quem fosse contemplado, só da parte da tarde ele procederia à leitura.
Um puto a correr chegou-se à janela da casa de Rosalinda e gritou, “senhora Rosalinda, há carta para si”, “ai os preservativos, e eu que não avisei o senhor Sepião que a próxima não era para abrir” pensou ela, ainda considerou pedir ao marido para ir ele buscá-la mas desistiu, era coisa de mulheres, não queria correr o risco de levar alguma lambada.
Até a comida do almoço lhe saiu salgada, e ouviu uma bronca do homem por isso, tal era o estado de nervos em que ficara, até a saliva não lhe ia para baixo.
Deu tempo para não encontrar ninguém e lá foi pela carta, bateu à porta e foi atendida pela criada, “espere um bocadinho, o senhor Sepião está ali a fazer uma coisa que não pode deixar a meio e já a atende”, voltando a fechar, passados dois ou três minutos a porta reabriu-se, era a criada que com uma cesta no braço lhe disse, “vou num instante à venda da Melita e já volto, o senhor Sepião já aí vem”, deixando a porta entreaberta.
Passados instantes ouviu-se um “entra”, e ela entrou, estranhou logo o facto do senhor Sepião estar de robe e não se lhe adivinhar nada por debaixo, ele estava com o envelope já aberto na mão, ela esticou a mão e disse-lhe (com a voz trémula) “essa não quero que ma leia, dê-ma cá se faz favor”.
Sepião suava, tinha os olhos esbugalhados, nos cantos da boca viam-se sinais de espuma, estava desvairado, esticou pouco a mão que detinha o envelope obrigando-a a chegar-se mais a ele, e, de repente agarrou-se a ela forçando-a a cair de costas na carpete com o corpo dele em cima do dela.
Ao cair Rosalinda bateu com a cabeça, ficou meio atordoada mas não perdeu o conhecimento, gritou, gritou, e debateu-se, os segundos pareciam horas e nunca mais ninguém aparecia, ele já lhe tinha rasgado a blusa e arrancado o sutiã, agora enquanto com uma mão tentava tapar-lhe a boca, com a outra tentava levantar-lhe as saias. Sepião tinha já a cara toda arranhada pelas unhas da Rosalinda mas parecia insensível à dor, não parava, até que ela abrindo a boca lhe apanhou dois dedos e ferrou de tal maneira que lhos traçou, Sepião soltou um aflitivo grito de dor, tirou a mão das partes baixas da Rosalinda e aconchegou a outra que ela lhe ferrara com fúria animal.
Ela aproveitou ele ter aliviado a pressão e fugiu, cá fora a rua estava deserta, ninguém tinha dado por nada, desatou a correr para casa, vendo-a num estado lastimável uma vizinha deitou-lhe a mão, outra que também presenciou a correria juntou-se-lhes.
Rosalina ainda pensou esconder o que se tinha passado, mas sabia que se o fizesse ia ser pior para ela, que justificação daria ao homem para as pisaduras que tinha nas faces e nos peitos?
Entretanto Sepião metera-se no carro e saíra de casa, o marido de Rosalinda que só costumava chegar a casa pelo pôr-do-sol, entrou esbaforido de rompante em casa da vizinha, já sabia de tudo, conforme entrou, voltou a sair, foi a casa e voltou de caçadeira na mão numa correria em direção à casa do violador, alguém lhe disse que já tinha fugido, desvairado, esvaziou uma cartucheira, na porta, janelas, no cão que estava amarrado à casota, quatro ovelhas, duas cabras, um bode, duas vacas de leite, coelhos e galinhas, nem o corvo de estimação de quem Sepião muito se orgulhava (porque até sabia falar francês) escapou, tudo morto, safaram-se dois ganços que andavam soltos e fugiram com o barulho dos tiros, e a criada que tinha ido à venda, avisada por alguém refugiou-se em casa do padre.
Os amigos não se chegaram enquanto não estourou o último cartucho, depois rodearam-no e levaram-no para o tasco do Paulino, só havia uma maneira de o segurar, embebedando-o, mas até o conseguirem, foram-se duas mesas três bancos e os queixos do Rocha que, tentando acalmá-lo lhe disse, “tem calma pá, ele não conseguiu fazer-lhe nada”.
Era já quase dia quando adormeceu, ele e mais cinco que por solidariedade o acompanharam na “piela”, conseguiram mantê-lo embriagado três dias, até que o padre tomou a seu cargo a gestão do caso. Acompanhou-o ao posto da guarda para formalizar a queixa e levou-o a falar com o médico que tinha assistido a mulher e lhe confirmou que não tinha havido violação, entretanto do Porto tinha chegado a irmã da Rosalinda para, por uns tempos, lhe fazer companhia.
Na aldeia vivia-se uma paz podre, temia-se que Sepião voltasse ou que o marido, que passou a andar sempre a “meio-pau”* fizesse alguma loucura, em casa da Rosalinda já restavam poucos móveis direitos, nas tascas já não era bem-vindo pois tornara-se no terror de copos, garrafas e não só.
A coisa estava neste pé quando, uma noite, já altas horas da madrugada, parou um carro desconhecido em frente à casa de Sepião, para pasmo dos que foram ver quem era, lá estava o profanador com mais quatro tipos grandalhões, primeira coisa a fazer, manietar o marido da Rosalinda, depois tocou o sino a rebate.
Quase não houve reação dos capangas perante o número de contendores, passados dois minutos, no máximo, estavam todos inanimados no chão, estava quase a raiar o dia quando os bombeiros, acompanhados da guarda, os conduziram ao hospital. Nesse mesmo dia, a meio da manhã, Sepião atirou-se do quarto andar, caindo em cima de uma cadeira de rodas de onde, há dois minutos, se tinha levantado a mãe do presidente da câmara, teve morte imediata.
Estava limpa a honra do marido da Rosalinda, mas ficou o vício do álcool, nunca mais foi o mesmo, foi-se a força, até, para dar ao zarelho nas feiras.
Rosalinda passou a viver desolada, preferia não ter saia suficiente para os filhos se agarrarem, nunca mais engravidou, e os preservativos causadores da sua desgraça continuaram todos dentro do envelope.
PS:
Na comoção da narrativa esqueci de referir que Sepião, logo que juntou dinheiro suficiente, enviou ao primeiro patrão o numerário que lhe havia roubado, acrescido de mais algum juntamente com um pedido de desculpa.
Ironicamente foi o homem, já muito velhinho, que o havia tirado da pasmaceira da aldeia, o único patrício que se deu ao trabalho de se deslocar a Freamunde onde viviam os dois filhos de Sepião, se realizaram as cerimónias fúnebres e onde foi a enterrar.
* Meio bêbado
NOTA: Esta história, e a do “Eufrásio”, pretendem ser uma singela homenagem à aldeia, e suas gentes, onde nasceu minha mãe.
Retrata de forma, exageradamente, ficcionada a vivência dos habitantes de uma terrinha da beira alta encravada entre serras, onde a luz chegou em finais dos anos 60 do século passado e a estrada só foi alargada e alcatroada após o 25 de Abril de 1974 pela tropa.
Tentem imaginar uma localidade após a Revolução dos Cravos, onde durante vários anos, não foi permitida (nas campanhas eleitorais) a passagem de caravanas dos partidos de esquerda, só “CDS” e “PPD”, o sino tocava mesmo a rebate e os “comunas” tinham de dar a volta.
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