domingo, 30 de dezembro de 2007

LADRÃO QUE ROUBA A LADRÃO

Foi assaltada uma unidade hoteleira no concelho de Paredes Distrito do Porto.
O assaltante, um jovem que aparentava vinte e poucos anos, actuou armado e de cara destapada, conseguiu intimidar o funcionário da recepção do hotel, retirar 50 euros da caixa registadora e pôr-se em fuga a pé, dirigindo-se a um monte próximo.
Até aqui tudo normal, só mais um assalto.
Acontece que a GNR, alertada pelo alarme accionado pelo funcionário do hotel ainda com o ladrão à sua frente, chegou passados 4 minutos após a fuga do ladrão, não seria difícil com quatro ou cinco elementos cercar o monte e capturar o delinquente.
Não, a GNR não saiu do hall do hotel, assalto à mão armado é da responsabilidade da Polícia Judiciária.
Tudo normal ainda…
Anormal é alguém ter tido lata para assaltar um hotel cujo nome é “Hotel Zé do Telhado”!
(zé do telhado à direita, o de barba)
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UM POUCO DE HISTÓRIA

por Guilherme Pereira
(Jornalista)


Zé do Telhado


Zé do Telhado, titular da Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, permanece no imaginário popular como um assaltante que roubava aos ricos para dar aos pobres. O mito e as lendas têm servido para ocultar um processo judicial feito de mentiras e provas forjadas.


Na campa, onde jaz, consta uma data de nascimento igualmente falsa. As quadrilhas integravam padres, morgados, administradores, empresários e alfaiates. Nunca foram julgados. A História reconduz-nos a julgamentos recentes, alguns dos quais da actualidade...

Na noite de 16 para 17 de Março de 1857, Zé do Telhado é já alvo de uma caça ao homem sem precedentes. Tinha renovado a quadrilha, agora constituída por Zé do Telhado e o irmão Joaquim, António da Cunha, o Silva mestre pedreiro, a senhora Tomásia, Joaquim Pinto e a mulher, donos de uma estalagem , o Morgado António Faria, o padre Torquato José Coelho Magalhães, o alfaiate Miguel Exposto, o Morgado da Magantinha(António Ribeiro de Faria) e o administrador Albino Leite.

Zé do Telhado resolve pernoitar em Amarante, cujo administrador, José Guedes Cardoso da Mota, fora avisado que o fugitivo passaria a noite na casa de Manuel Teixeira, do Sardoal.

Cabos de ordens, tropas de caçadores e regedores das freguesias são mobilizados em peso para a captura, cujo comando fora confiado ao regedor Alves, de São Gonçalo.

Cercaram a casa durante a noite. Mal irrompessem os primeiros raios de sol, por imposição legal, o assalto e as prisões consumar-se-iam. A mulher do dono da casa, quase de madrugada, apercebeu-se do cerco e tentou alertar Zé do Telhado, entretanto ocupado a cuidar do visual.

Nas situações mais dramáticas, o homem cofiava a barba hirsuta, ajeitava o paletó, empertigava a peitaça frente ao espelho.

Dirigiu-se a uma janela e interpelou um dos cabos. ”Quem anda aí? – as palavras de Zé do Telhado rasgaram a noite gelada. A resposta chegou e trazia mau augúrio: ”É o regedor da freguesia. Por ora não queremos nada, o que queremos será mais logo”. O foragido dirige-se para o lado oposto da casa e abre outra janela. ”Tu, que estás detrás do carvalho, sai!.. senão morres!”

Ao grito da última palavra, colou-se um tiro que aterrorizou a patroa. “Entregue-se, senhor, que eles não lhe fazem mal” – ajoelhou-se a mulher. Zé do Telhado nem ouviu. Ao nascer do dia, para surpresa geral, abre a porta de casa e aparece de peito feito. Desce os degraus e simula que se vai entregar. Em tropel, a tropa lança-se sobre a criatura. O gesto é fulgurante - recua, entra de novo em casa, bate com a porta, foge pelas traseiras, galgando um monte.

Os sitiantes seguiram-lhe no encalço. Sentindo-se perseguido, desfechou um tiro. Depois, outro. Estava morto o regedor Alves, comandante do pelotão destroçado.

A verdade histórica confronta-se, hoje, com as versões oficiais e a lenda de José Teixeira da Silva, nascido em 1818 no lugar do Telhado, freguesia de Castelões de Recezinhos, concelho de Penafiel.

Aos 14 anos, o garoto muda de ares e vai residir para casa do tio João Diogo, no lugar de Sobreira, freguesia de Caíde de Rei, concelho de Lousada. Castrador e tratador de animais, acolhe o sobrinho, interessado em aprender o ofício. Diogo tinha vida abastada e deu abrigo a José Teixeira da Silva durante cinco anos.

Agosto quente, festa da Senhora da Aparecida, 13 de Agosto, dia de folguedo geral no lugar. José Teixeira descobre o aceno de um lenço branco por detrás de uma janela, na casa onde morava.

Ana Lentina, a prima, faltara ao festim. Afogueado, o moço galga o portão e corre para os braços da prima. Um beijo subtil e cinco palavras de amor selaram uma paixão que acabaria em casamento e tragédia. Tinha 19 anos.

Pouco depois, assenta praça no quartel de Cavalaria 2, os “Lanceiros da Rainha”. Corria o mês de Julho de 1837. Rebenta a “Revolta dos Marechais”, contra o partido dos setembristas e pela restauração da “Carta Constitucional”. Os lanceiros alinham com os revoltosos, desbaratados a 18 de Setembro.

O general Schwalback, líder da insurreição, foge para Espanha e leva José Teixeira, que se distinguira em combate. A caminho do exílio, o intrépido recebe a notícia de que o tio, finalmente, abençoara o seu casamento com Ana.

Regressado com um perdão a Portugal, troca alianças a 3 de Fevereiro de 1845. A 7 de Novembro, nasce a primeira filha do casal – Maria Josefa.

Grassava no país uma revolta larvar contra o governo de Costa Cabral. O povo, ajoujado a impostos e arbítrios, aproveita a publicação da “Lei de Saúde Pública”- que proíbe os funerais nas igrejas e impõe aos cadáveres um exame por mandatários do governo, em detrimento dos cirurgiões locais – e amotina-se por todo o Minho contra as “papeletas da ladroeira”.

Estala a 23 de Março a “Revolução da Maria da Fonte”, liderada por mulheres. As quatro cabecilhas da revolta são presas dois dias depois, mas o rastilho espalha-se a Trás-os-Montes.

Há soldados que desertam para o lado dos insurretos. Chaves adere, depois Póvoa de Lanhoso, Vila Real, Guimarães. Centenas de revoltosas são presas pelos soldados e libertadas por companheiras.

José Teixeira foi o líder militar da insurreição, à qual aderiram pés descalços e o General-Visconde de Sá da Bandeira, às ordens de quem fica o sargento Silva. Logo se distingue na expedição a Valpaços.

Os actos de bravura, despojamento, apurado instinto militar, num combate que perdeu, valeram-lhe a mais alta condecoração que ainda hoje vigora em Portugal: a ” Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito”.

O pior viria depois.

Derrotado, aconchega a condecoração, tira as divisas de sargento e voa como um pássaro para os braços da mulher e dos cinco filhos. Os vencedores atacaram a canalha. José Teixeira é perseguido, atola-se em dívidas por impostos que não consegue pagar e é expulso das Forças Armadas.

Não há quem lhe dê ofício, a todas as portas bateu – todas se lhe fecharam.

Assim nasce o Zé do Telhado que faria lenda.

Nesse tempo, Custódio, o “Boca Negra”, capitaneava a maior quadrilha de bandoleiros que aterrorizou as duas beiras em 1842. Conhecia, de gingeira,as façanhas militares de José Teixeira.

Ferido num dos assaltos, “Boca Negra” leva Teixeira a um casario meio abandonado onde se acoitava o bando. Apresentam-se à luz da vela - o “Tira-Vidas”, “O Girafa”, o “Sancho Pacato” o “Veterano” e o “Zé Pequeno”. Para o assalto do dia seguinte, “Boca Negra”, o líder ferido, informa a quadrilha que José Teixeira o substituiria no comando.

A bola de neve cresceu, imparável.

Zé do Telhado faz e reorganiza quadrilhas, ganha fama de generoso e audaz pelas vítimas que escolhe para os assaltos e o destino do dinheiro ou das jóias – os desgraçados com que se cruzava e, antes de tudo, a “ minha rica mulher e os queridos filhinhos”, como os viria a chamar, mais tarde, ao companheiro de prisão Camilo Castelo Branco.

A fama do bandoleiro atravessa o país. O temido Zé do Telhado emite, aos que estimava, um salvo conduto com a sua assinatura e esta informação:

” O portador deste salvo-conduto pode passar livremente e mando que o ajudem quando for preciso”.

Com as autoridades no seu encalço por todo o país, mil vezes o cercaram, mil vezes se escapuliu o tenebroso. Vendo-se perdido, decide fugir para o Brasil. Escondeu-se na barca “Oliveira”, acostada no Porto, onde lhe dera guarida nos últimos três dias Ana Vitória, uma das suas vítimas que passou a idolatrá-lo e sobre quem disse haver pessoas “de bem que nunca deram às classes humildes um centésimo do que lhes deu Zé do Telhado.” Desarmado e a horas de zarpar, Zé do Telhado é preso no esconderijo, a 5 de Abril de 1861.

Às dez da manhã do dia 25 de Abril, começa no tribunal de Marco de Canaveses o julgamento de José Teixeira da Silva.

No dia 27, às duas da madrugada, o júri, presidido pelo juíz António Pereira Ferraz, considerou Zé do Telhado culpado da prática de doze crimes. Roubos, um homicídio, organização de quadrilha de assaltantes e a tentativa de evasão sem passaporte.

“Condeno o réu José Teixeira da Silva da freguesia de Caíde de Rei, comarca de Lousada, na pena de trabalhos públicos por toda a vida na Costa Ocidental de África e no pagamento de custas” – assim determinou o tribunal.

O julgamento, sabe-se hoje, foi uma farsa. Uma consulta, ainda que superficial, a todos os documentos oficiais que constam no Tribunal da Relação do Porto e no Arquivo Distrital do Porto não deixam qualquer margem para dúvidas.

Alguns dos membros das quadrilhas chefiadas por Zé do Telhado foram arroladas pela acusação e safaram-se. Morgados, padres, administradores e regedores que tinham cometido os mesmos crimes do réu nunca seriam acusados ou perseguidos.

Várias testemunhas de acusação nada viram, de tudo souberam por terem ouvido.

Consta do processo que António Ribeiro, pedreiro, ”ouviu dizer que fora o querelado José do Telhado a roubar”. Alexandre Nogueira, comerciante, “não sabe que armas feriram o regedor se as do querelado se as dos sitiantes”. António da Silva, lavrador, “soube pelo ouvir dizer do padre roubado que o Zé do Telhado fora um dos que penetrara dentro da casa armado e isto tem ouvido ao povo”. Manuel de Sousa, lavrador, disse que “ sabe por ser bem público que tivera lugar o roubo de que se trata no dia pela forma que nos autos se declara”. Timóteo José de Magalhães, lavrador, “ disse que sabe pelo ter ouvido ao povo que tivera lugar o roubo de que se fala nos autos”. Francisco Moreira da Cunha, lavrador, “ouviu dizer e ser público e notório que o réu José Teixeira e o irmão estavam para embarcar para o Brasil”.

Só um tiro sairia pela culatra à acusação. Francisco António de Carvalho, lavrador, afirmou que “ o Zé do Telhado pagava crimes que não tinha cometido e ouviu dizer que se havia combinado com o administrador do concelho para imputar os dois crimes de roubo ao Zé do Telhado”.

Os quadrilheiros nobres evadiram-se para o Brasil, como sucedeu com o padre Torcato, ou colaboraram com a acusação, a troco da ilibação. O historiador Campos Monteiro analisou os autos e emitiu um parecer a este respeito:

“ É de crer que nesta altura se movimentassem altas influências tendentes a ilibar estas parelhas de bandidos engravatados. O facto é que saíram em liberdade. E é natural que o administrador, ao mesmo tempo que os inocentava, procurasse aproveitá-los ”.

O caso da ilibação do Morgado da Magantinha está igualmente documentado nos autos. Após a fuga do padre Torcato, a acusação subornou a testemunha António Eliziário que, perante o juíz, afirmou saber que “Margantinha foi um dia convidado pelo padre Torcato a ir ter à capela de Santa Águeda e, indo ali, o encontrou com alguns membros da quadrilha e quatro bois roubados”, pedindo-lhe “ o padre que tomasse conta dos bois para os vender, mas o Margantinha recusou-se”.

A verdadeira história do mito Zé do Telhado está mal contada, a começar pela data de nascimento que lhe é atribuída – na campa aparece 1815, em vez de 1818 – e culminando no julgamento relâmpago que durou menos de dois dias úteis.

Foram subtraídas testemunhas indispensáveis, promovidas declarações falsas e adulterados os critérios de escolha dos jurados. Em vez do sorteio, foram escolhidos a dedo conhecidos inimigos de Zé do Telhado. Condenado ao degredo, José Teixeira da Silva desembarcou em Luanda, seguindo para Malange, onde viveu cerca de um ano.

Palmilhou cada légua das terras da Lunda.

Fez-se negociante de borracha, cera e marfim.

Casou-se com uma angolana, Conceição, de quem teve três filhos. Cresceu-lhe a barba, até ao umbigo.

Era, para os angolanos, o “quimuêzo” – homem de barbas grandes.

Viveu desafogado, financeiramente. As saudades da mulher e dos cinco filhos levaram-no mais cedo.

Morreu, moído de remorsos, aos 57 anos.

Sepultado na aldeia de Xissa, a meia centena de quilómetros de Malange, os negros ergueram-lhe um mausoléu.

Hoje, fazem-se romagens à campa do mito.

Os anciãos de Malange dizem que, embora fosse um homem austero, tinha um grande coração e nunca deixava cair um pobre.

Zé do Telhado


P.S.1

O julgamento de Zé do Telhado iniciou-se em 25 de Abril de 1859, com acusação pública em 9 de Dezembro do mesmo ano. Foi condenado na pena de trabalhos públicos por toda a vida, na costa ocidental de África e no pagamento das custas. Esta pena foi mantida pelo Tribunal da Relação do Porto, cujo acórdão de sentença substituíu a expressão "costa ocidental de África", por "Ultramar".

Por acórdão da mesma instância, foi comutada a pena aplicada na de 15 anos de degredo para a África Ocidental, que contou desde a data de publicação do Decreto de 28 de Setembro de 1863.

A condenação deu como provados os seguintes crimes: tentativa de roubo, na forma tentada, em casa de António Patrício Lopes Monteiro, em Santa Marinha do Zêzere, comarca de Baião, homicídio na pessoa de João de Carvalho, criado de Ana Victória de Abreu e Vasconcelos, de Penha Longa, Baião, roubo na casa de referida senhora (Casa de Carrapatelo) de objectos de ouro e prata no valor de oitocentos mil e um conto de reis e algumas sacas com dinheiro, cujo valor a queixosa calculou em doze contos de reis, ainda que revelasse desconhecer os montantes visto que o dinheiro se encontrava na casa mortuária onde jazera, poucos dias antes, seu pai, e, após isso, ela ainda nem sequer lá voltara a entrar, roubo em casa do Padre Padre Albino José Teixeira, de Unhão, comarca de Felgueira, no valor de um conto e quatrocentos mil reis em dinheiro e ainda objectos de prata e outro, outro homicídio na pessoa de um correligionário, ferido num confronto com as autoridades.

Para além de outros crimes de roubo e de resistência à autoridade, foi também condenado como autor e chefe de associação de malfeitores e de tentativa de evasão do reino sem passaporte, com violação dos regulamentos policiais.

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